Algumas organizações religiosas parecem se adaptar às exigências
de um tempo marcado pela lógica do entretenimento de grande escala midiática.
Trata-se de mais um fenômeno cultural da sociedade contemporânea.
O conhecimento passa a ser predominantemente construído por meio
de imagens e emoções. O suporte das mídias digitais amplia as possibilidades de
experiências multimidiáticas facilmente reproduzíveis. Os satélites, antenas e
cabos se prestam a transmitir infindáveis horas de cultos, relatos e pregações
de novos sacerdotes, especialmente à vontade com as novas linguagens da
comunicação.
A religião parece aumentar sua presença nesse ambiente. As
igrejas e movimentos mais tradicionais sentem dificuldade de transpor suas
mensagens para esses novos meios. Foram séculos centrados na palavra anunciada
a partir de púlpitos elevados, destinada a fiéis que se concentravam na leitura
do Livro Sagrado ao longo da semana. Atualmente, é restrito o número de pessoas
que se dedicam à leitura de livros mais exigentes, especialmente os de
linguagem rebuscada, que exigem o acompanhamento de um dicionário.
Dentre as lideranças religiosas, quem não se adaptou à nova
realidade frequentemente vê seus templos ficarem mais vazios ou não terem o
crescimento do número de fiéis como gostariam. Há uma verdadeira batalha por
corpos e mentes entre diversas denominações e, até mesmo, religiões, que se
explicitam nos locais de culto, meios de comunicação e produtos midiáticos, tais
como CD, DVD, softwares, VHS e outros.
Especialmente no Brasil, de uma matriz histórica colonialista católico-romana,
acrescenta-se o tempero do sincretismo
religioso, que serviu como defesa cultural aos povos nativos, colonizados e
escravizados. A desconfiança em relação aos discursos dominantes parece tornar
mais comum à construção da compreensão individualista de uma fé que ajude a
enfrentar o cotidiano marcado pela desigualdade e ciclos viciosos de reprodução
da pobreza.
Um dos elementos que explicam o caráter peculiar da modernidade
é a separação de
tempo e espaço, dimensões antes ligadas
por meio do lugar. A intrusão de eventos distantes na consciência cotidiana
promove o descolamento das relações sociais dos contextos locais, antes
obrigatórios à convivência.
Daí se dá a rearticulação mediada desses mesmos relacionamentos e
outros por partes indeterminadas de espaço-tempo. Essa nova condição leva aos mecanismos de desencaixe,
que separam a interação humana das características do lugar de encontro e, por
fim, à reflexividade
institucional, ou seja, cada indivíduo
precisa manter sempre a chamada dúvida radical e definir por si só no que crê,
a que se dedicar e como dar sentido à sua existência.
É o desenvolvimento do pensamento weberiano sobre o individualismo heróico, ampliado pelas
tecnologias de informação e comunicação que permitiram transpor distâncias e culturas. As exposições às mais diversas
manifestações culturais, devidamente justificadas pela Ciência, aumentam o
relativismo e diminui o poder de autoridades religiosas para
influenciar o comportamento dos fiéis.
Outro fator importante é, quando afirma que a concentração de
poder na mídia no século XX embaralhou as possíveis linhas divisórias entre
informação e entretenimento, inclusive com as influências mútuas entre
política, mídia, economia e religião. O fenômeno dos radioevangelistas e televangelistas
já completou mais de 80 anos e segue comprovando essas simbioses, como
demonstram algumas igrejas neopentecostais brasileiras e até as eleições
presidenciais nos EUA. Vale lembrar que o
Vice-Presidente da República do Brasil (2003-2006 2007), José de Alencar, é
filiado desde 2005 ao Partido Republicano Brasileiro, considerado pela imprensa
o braço político da Igreja Universal do Reino de Deus.
Há uma orientação nas escolas e empresas de comunicação para que
a informação não seja algo enfadonho. Nesse sentido, alguns componentes do
entretenimento são absorvidos para manter a atenção da audiência. O que
inicialmente tinha uma intenção didática parece que acabou por se tornar a
própria mensagem. Basta ver a dificuldade de entender a diferença entre a
atuação dos profissionais da persuasão, como assessores de
imprensa, cineastas, marketing político,
marketing
religioso, propagandistas, publicitários, relações públicas; e os profissionais da
informação, tais como os da Imprensa.
Segundo Bertrand, os meios de comunicação deveriam ter dentre
suas funções principais:
• Observar o
contexto; oferecer um relato
sucinto e organizado dos acontecimentos que podem ou não afetar o cotidiano
pessoal.
• Assegurar a
comunicação social; para que a democracia se
estabeleça é preciso contar com espaços de discussão para que se elaborem compromissos,
com vistas à coexistência pacífica.
• Fornecer uma
imagem do mundo; como não é possível o
conhecimento direto, para o homem comum inexiste a maior parte das regiões geográficas,
pessoas e assuntos sobre os quais a mídia não fala.
• Difundir a
cultura; compartilhar uma visão
do passado, do presente e do futuro que seja imbuída de tradições e de valores
éticos que fortalecem no indivíduo uma identidade étnica, especialmente se de
acordo com os Direitos Humanos.
• Contribuir para
a felicidade, divertir; no mundo contemporâneo as
pessoas vivem mais, e, algumas, podem se organizar para dedicarem mais tempo a
outros afazeres que não apenas o trabalho.
• Fazer comprar; atuar como vetores da propaganda, que ajuda a movimentar as
atividades econômicas, estimular a concorrência e, por outro lado, pode servir
à manipulação e incitação do desperdício.
Originalmente se poderia pensar no entretenimento como o conjunto de ações
que divertem, distraem e ocupam o tempo das pessoas entre duas atividades
consideradas essenciais à sobrevivência, como o trabalho e a
proteção à família. Apesar dessa definição apontar para algo aparentemente
supérfluo, o entretenimento é inerente à
humanidade e é um importante fator de
desenvolvimento de laços sociais e da cultura. Inicialmente se dava nas conversas,
estórias, brincadeiras, músicas, teatro e danças comunitárias, muitas
vezes nas feiras em que o povoado se encontrava periodicamente.
Atualmente, o entretenimento se transformou em algo diferente. Ainda há espaço para a riqueza
das manifestações culturais de influência regional, das conversas ao ‘pé da
mesa’, dos jogos e diversões típicos de uma localidade. No entanto, cresceu
imensamente a atuação globalizada dos grupos de mídia multinacionais, com a
ascensão de uma lógica industrial para o estabelecimento de mercados competitivos
ao redor de ídolos musicais, cinematográficos, televisivos, esportivos e de
outras ordens. Na prática, para alimentar a voracidade dessa complexa teia de
interesses, se estabelecem novas linguagens e tempos para manter os recursos
financeiros em movimento e conquistar os corações dos fãs.
Algumas características atuais da produção dos fenômenos midiáticos
com vistas ao entretenimento incluem:
1.
Imediatidade. O culto ao presente e a
desvalorização da memória. O que vale é o que atrai e movimenta o maior número
de pessoas agora. Um grande sucesso de ontem pode não significar nada mais
hoje. Os produtos do passado, ainda que recente, são tratados com estratégias
mercadológicas voltadas ao aproveitamento residual, ou seja, continuar a vender
para os apaixonados que se prenderam emocionalmente ao astro em declínio ou
buscar relançamentos para conquistar novas audiências.
2.
Descartabilidade. Se o presente vale sempre
mais que o passado, a busca permanente da novidade é parte da lógica dessa
indústria do entretenimento. Isso significa estar pronto para descartar o que
era mais apaixonante até recentemente e mandar para o limbo midiático aqueles
que não conseguem manter suas metas de vendas.
3.
Exotismo e singularidade. Atrai a atenção de mais
pessoas ao mesmo tempo o que é exótico, diferente e singular. O que é belo ou muito
feio, de acordo com padrões estéticos impostos pela própria indústria do
entretenimento. Os extremos chamam a curiosidade: gordo, magro, nanismo,
gigante, colorido, venenoso, sexy, repulsivo, estúpido, gênio, rápido, lento
etc. Daí para se chegar à aberração como norma, não é muito distante.
4.
Superficialidade. Se o presente dita a
descartabilidade constante, acaba por se chegar à superficialidade, ao império
dos sentidos em contraste à laboriosa reflexão. Vale o que emociona, mesmo que signifique
pouco ou nada. O mais comum é a emoção que não pede reflexão, a de reação
instantânea, instintiva, atávica. As pulsões incentivadas ao máximo: a
violência e o sexo como eixos estruturantes. A relação com o objeto que
emociona é de imediata adoção, sem maiores laços, para facilitar o descarte
assim que algo novo surgir. Os casos de devoção, como os dos ‘fãs-clubes’ não
superam essa superficialidade, à medida que nunca chegam à relação pessoal em longo
prazo com seus ídolos.
5.
Percepção facilitada. Se apaixonar por uma
atriz, um cantor, um ídolo, uma música ou um filme pede que os atributos de
atração sejam facilmente descobertos e, para tanto, ressaltados claramente pelos
produtores. Fazer pensar não é o objetivo, pelo contrário, quanto mais visceral
for à associação dos consumidores midiáticos, mais aptos a gastarem por seus
ídolos estarão.
6.
Audiência. O único indicador de
qualidade válido é o sucesso de vendas, a audiência comprovada e o número de
pessoas interessadas. Só a presença de uma multidão disposta a se mobilizar
pelo objeto de entretenimento indica ser algo de boa qualidade. Os comentários dos
profissionais de crítica não chegam aos ouvidos da grande massa, por estarem
restritos, prioritariamente, aos jornais e revistas, meios de pouca circulação.
7.
Passividade. Da forma como está
organizado, o entretenimento de grande escala midiática só permite uma associação pessoal
limitada à função de receptáculo. Mesmo os programas que anunciam a participação
popular se restringem a votações geralmente pagas, com foco em aspectos menores
do que é apresentado. As pessoas devem se limitar cada vez mais a uma espécie de lobotomização regida
por interesses comerciais dos produtores.
Devido à crescente importância do entretenimento de grande escala
midiática, aumenta o número de interessados em tomar esse caminho para uma
ascensão social rápida. Antes, era objeto de atenção da mídia aquele capaz de
realizar algo, um grande feito ou um talento especial. Atualmente, há vários
casos do ‘animal midiático’, que é midiatizável por razões intrínsecas à
própria mídia, tais como uma relação sexual com alguém famoso. O culto às
celebridades gera seus próprios gnomos, de menor escala, em relação aos deuses do
panteão principal.
O que o entretenimento atualmente anuncia e reforça vai ao
encontro do que se percebe como os valores fundamentais da sociedade
contemporânea. No que afeta diretamente à religião encontram-se os seguintes:
• Deísmo. A pluralidade religiosa é diferente da devoção simultânea a
vários deuses. O sincretismo foi suplantado pela capacidade de dissociação que
as pessoas fazem entre o que professam como fé e suas práticas cotidianas. A
divindade foi alocada num cubículo da mente, com quase nenhum contato com o
mundo do trabalho, dos relacionamentos pessoais e das atividades corriqueiras.
Outros deuses concorrem, tais como o dinheiro, a sensualidade, a beleza, a
força, a fama, enfim, o poder.
• Consumismo. As pessoas são reconhecidas pelo que possuem, pelos bens
materiais que alcançam e o patamar de consumo que ocupam. Se o que importa é a
riqueza, está instalado o materialismo, a crença no que é possível obter, a
perda da subjetividade e a aridez do fosso social encarado como desejável. O
hedonismo é seu gêmeo univitelino, pois amplia a lógica da posse para as
relações pessoais e individualiza ao extremo a noção de bem estar. Isso aponta
para a exclusão e a indiferença.
Incluir o consumismo e o deísmo na espiritualidade parece mais
apropriado à magia do que à religião. Em sua análise dos principais conceitos
weberianos, aponta que:
(...) magia é coerção do
sagrado, compulsão do divino, conjuração dos espíritos; religião é respeito, prece,
culto e sobretudo doutrina. Sendo principalmente doutrina, a religião
representa em relação à magia um momento cultural de racionalização teórica, de
intelectualização, com nítidas pretensões de controle sobre a vida prática dos
leigos, querendo a constância e a fidelidade à comunidade de culto. A
normatividade que corresponde à magia é tabu; a normatividade que vai resultar
da religião é a ética religiosa.
Se magia é tentar subordinar os deuses e alcançar benefícios
imediatos, individuais ou para o círculo de pessoas mais próximas, talvez se
esteja presenciando o retorno do magismo sobre as manifestações religiosas
contemporâneas, especialmente as de cunho midiático. Ética e doutrina não têm a
mesma plasticidade visual que mágica e manifestações sobrenaturais
programáveis.
A mescla de magia com as características do entretenimento de grande escala midiática
parece avultar dentro das organizações religiosas.
A começar que é dispendioso manter a estrutura para dar conta do
aparato técnico que a mídia precisa para funcionar. Essa necessidade de
recursos financeiros acaba por se imiscuir em tudo que se planeja, age ou
reflete por parte das lideranças. A tal ponto que fica confuso sobre quais são
os fins e quais são os meios.
Para manter a máquina girando, alguns se rendem à lógica do entretenimento, com aberrações em
destaque, predominância de músicas e efeitos visuais cada vez mais inebriantes
ao longo do culto, ênfase no volume da arrecadação e promessas de satisfação
imediata das necessidades dos fiéis. A entrega sensual da audiência às emoções
invocadas é sinal de bênção. O transe se torna cada vez mais semelhante aos
rituais mágicos de curandeiros animistas. A catarse semanal ajuda a enfrentar a
vida, com a certeza da vitória constante. Funciona como um show ou apresentação
midiática. Ao final, a sensação de bem estar vale o esforço e os custos
envolvidos. A religião que gera uma mudança ética, uma conversão, exige
reflexão e dedicação ao estudo sistemático da doutrina. Isso requer tempo e
esforço, duas variáveis que as pessoas parecem pouco dispostas a aplicar na sua
espiritualidade. Seja por estarem tomadas pela lógica do entretenimento ou
mesmo pela dificuldade de encarar a complexidade do contemporâneo e pós-moderno.
Por outro lado, a expulsão da manifestação sobrenatural
realizada pelas organizações religiosas centradas no clericalismo e seus
intelectuais já deu mostras de falência múltipla de órgãos. A exemplo de alguns
países europeus, onde as igrejas se tornaram pontos de atração turística e
continuamente vazias de fiéis. Encontrar o meio termo entre a necessidade de
adotar novas linguagens que expressem uma espiritualidade mais adequada ao
mundo contemporâneo e a entrega absoluta à lógica do entretenimento é um desafio.
Para a Associação Mundial de Comunicação Cristã (WACC), são os
seguintes os princípios cristãos da comunicação: vivenciar a comunicação desde
uma perspectiva cristã; a comunicação cria comunidade; a comunicação é
participativa; a comunicação liberta; a comunicação presta apoio e desenvolve
as culturas; a comunicação é profética.
Definitivamente, religião não pode ser entretenimento. Sob o
risco de contar com uma grande audiência, seduzir multidões e não cumprir sua
função principal, de transformação.
Em Cristo..
Pr.Capelão Edmundo Mendes Silva